Beckenbauer. Uma palavra que carrega em si várias coisas. Na gíria futebolista, aparece na letra S do dicionário. Sucesso, caracterizado pela intemporalidade, pelo carisma de rei que a certa altura governou, por um defesa-central tão, mas tão intimidatório naquelas nostálgicas décadas de 60 e 70. Bem, mas não é tudo.
«As pessoas com quem eu andava eram muito ignorantes, não sabiam pronunciar o nome direito, descobriram que o apelido dele era Kaiser e passaram a chamar-me assim». Ficou então Carlos Kaiser - imperador em alemão -, e não, também não é uma espécie de Adriano que aqui está em causa. Falamos de Carlos Henrique Raposo, o 'avançado' que foi motivo de filme, de livro e da atenção dos muitos interessados por histórias imensamente peculiares, e claro, ligadas ao desporto-rei.
«O grande futebolista que nunca jogou futebol» retrata um bolo recheado de peripécias excêntricas. Um caso irrepetível, diga-se. 26 anos de carreira e... «Jogo completo tem poucos, uns 20 talvez». Um caso à parte num contexto propenso ao vigarista que envergou cores de emblemas brasileiros de grande calibre. O amigo de Bebeto, Romário e Renato Gaúcho até por Portugal passou, mas foi no Brasil onde o grosso da mentira, da muita mentira aconteceu. O Robin Hood em tons meios germânicos é hoje uma figura incontornável do desporto-rei, não fosse o melhor de sempre na sua «posição».
Ao longo de duas décadas e meia de carreira, Kaiser «jogou» em seis países diferentes e em vários clubes de nomeada. A lista de lesados, conta, supostamente, com Flamengo, Bangu, Fluminense, Vasco, América e Palmeiras (Brasil), Puebla (México), El Paso (EUA), Independiente (Argentina), Gazélec Ajaccio (França) - Fabinho, o suposto amigo que levou Kaiser para a Córsega, alega que o caso do Ajaccio não passa de uma mentira - e quase... o Louletano (Portugal).
«Não me arrependo de nada. Os clubes já enganaram tantos jogadores, alguém tinha que ser o vingador dos caras».
As origens de Carlos Henrique Raposo levam-nos para Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O pinóquio da bola nasceu em 1963 e passado sete dias foi raptado. Isso mesmo, o recém-nascido foi levado e cresceu com uma mãe adotiva, que olhava para o menino como uma solução para ultrapassar os seus problemas monetários. O primeiro passo foi dado quando Kaiser ingressou nas camadas jovens do Botafogo - o talento era algum -, pelo menos o suficiente para o seu passe ser vendido a um empresário. O contrato detinha uma cláusula de quebra incomportável. Em suma, a criança havia sido feita «refém».
Ainda nas camadas jovens, também atuou pelo Flamengo. Kaiser vivia o sonho de muitos como se de um pesadelo se tratasse. Mais tarde admitiu que o seu objetivo passava por estudar, por ser professor de Educação Física, contudo, face às circunstâncias, o futebol foi mesmo a sua vida.
O rumo que lhe deu, esse, é um poço de mistérios, mas há que reconhecer a sua genialidade, nem que seja pela construção de um falso ídolo. E se tentarmos perceber como foi possível, a história fica ainda mais saborosa. Vale por isso muito a pena mergulhar em detalhes. Os primeiros, pela voz da lenda:
«A minha estratégia para não jogar era simples: primeiro, tens que ter na cabeça que era numa época sem internet e sem exames de ressonância magnética. Então simulava lesões em treinos. Às vezes combinava com o defesa-central e ele entrava mais forte sobre mim. Aí tinha aquela simulação marcante, ou às vezes até sentia mesmo uma dor muscular. Como não se faziam exames, era a palavra do jogador contra a do médico. Se a coisa complicasse, tinha um amigo dentista que passava um atestado de problema dentário».
Consta-se que o vigarista distribuía camisolas pelos jornalistas e até algumas informações passava sobre as várias equipas por onde foi atuando. Esse apoio tornava-se essencial para a mentira junto dos dirigentes dos clubes, espantados com os títulos de jornal. Um exemplo? Depois de conhecido que o jogador ia representar o Bangu, um jornal regional replicou a informação da seguinte forma: «Bangu já tem o seu ´Rei`: Carlos Kaiser».
Mas não era tudo. Outra vantagem consistia na relação próxima com estrelas da bola à época, como Gaúcho, Renato Gaúcho ou Ricardo Rocha. Foram muitos os companheiros de profissão que encobriram as mentiras do atacante. Fez amigos um pouco por toda a parte, mas foram os mais próximos que embarcaram nas noites boémias onde Kaiser era definitivamente o melhor em «campo». As mulheres, o álcool, as noitadas sem fim à vista criaram ligações, e um sem número de histórias por contar.
O também conhecido por 171, numa clara alusão ao artigo 171º do Código Penal brasileiro: crime de «estelionato», conta com um leque de situações que prometem deixá-lo estupefacto. Que simulava lesões, já não é novidade, no entanto, Kaiser foi ainda mais longe, para sorte desta enumeração de episódios incríveis.
As orgias eram uma das perdições dos futebolistas daquele tempo. Até por aí Kaiser consolidou amizades, não fosse uma espécie de agente do sexo, um intermediário que colocava os seus companheiros de equipa exatamente onde eles queriam estar: «Na época a gente ficava concentrada num hotel. Eu chegava três dias antes, levava dez mulheres e alugava apartamentos dois andares abaixo onde a equipa ia ficar. De noite ninguém fugia de concentração, a única coisa que a gente fazia era descer as escadas».
«Comecei a aquecer e vi os adeptos a insultar a equipa. Saltei a vedação e fui ´brigar`. Fui expulso antes de entrar em campo».
Pois bem, se o primeiro problema estava resolvido, como seria quando tivesse de enfrentar Carlos de Andrade? O que se seguiu foi mais uma prova da léria que em muito o ajudou a cimentar-se como falso jogador da bola: «Sentei-me no balneário. O doutor Castor entra e quando chega à minha beira disse-lhe: ‘Antes que o senhor diga qualquer coisa, Deus deu-me um pai e levou. E ele deu-me outro. Então jamais vou admitir que digam que o meu pai é ladrão e os adeptos estavam atrás de mim a dizer isso.’ Ele segurou-me pela nuca, deu-me um beijo e convidou-me para viajar. E ainda renovou comigo por mais seis meses».
O cenário era o seguinte: Kaiser, várias bolas e uma casa cheia para ver os seus dotes. Nervoso com a possibilidade de fazer má figura, o malandro fez-se de desentendido e começou a bombear todas as bolas disponíveis para o seu novo público. Os franceses, encantados com o brasileiro, foram ao delírio, isto enquanto os supostos problemas com a língua francesa o safaram de boa.
Além disto, junta-se a história do telefone de brincar no balneário do Botafogo, com o intuito de simular o assédio de outros clubes. Ainda a tentativa falhada em juntar-se ao Fluminense, mas que deu para tirar proveito nos shoppings, onde andava com o equipamento que lhe havia sido entregue para treinar e, com essa suposta estaleca, distribuía camisolas pelos fãs. Muitas mais destas devem haver, histórias verdadeiras e mentirosas. Se alguma fugiu desse espetro, talvez tenha sido mesmo a contratação por parte do Vasco da Gama. O motivo? Ajudar um futebolista do clube a deixar os problemas com o álcool, isto porque apesar de partilhar dessa loucura, Kaiser conseguia controlar-se.
«Foi maravilhoso, é um povo maravilhoso. Eu sou diferente dos outros jogadores, eu gosto de educação, de cultura. Gosto de comer bem, gosto de conhecer lugares que me acrescentem. (...) Não criei amizade, mas cheguei a conhecer Fernando Couto. Ele era um boémio e um jogador admirável».
«Vão ver a realidade da minha vida, um cara que é viúvo três vezes, que perdeu um filho aos 18 anos, que não conhece a mãe verdadeira... e também falo do submundo do futebol, porque as pessoas não imaginam».
Também na literatura, pela mão e caneta de Rob Smyth, um escritor inglês com veia para o desporto, Kaiser tem a sua história ainda mais difundida, apesar de que dar nas vistas nunca foi do seu interesse. As repercussões estão ao nível do feito que conseguiu, algo muito difícil de voltar a ocorrer, dado que a era de desinformação e dos primórdios da internet já lá vai.
A carreira fora das quatro linhas, para sermos corretos, está há muito enterrada. Kaiser, depois de se ter formado como professor de Educação Física, é hoje profissional numa área onde já não tem qualquer aspiração: «O que eu esperava do futuro é aquilo que já sou: o melhor treinador de Wellness e Models do Brasil por cinco federações. Eu não sou um simples professor de Educação Física, sou o melhor naquilo a que me proponho».
Forrest Gump à brasileira. A associação ao filme de Tom Hanks é outra expressão com sentido aproximado àquela que foi jornada de Kaiser, o maior vigarista de que há memória. A grande mentira teve muitos pilares, desde as amizades com as pessoas corretas e a lábia, até às artimanhas perfeitamente estruturadas e o completo reconhecimento após dezenas de anos, o destaque que faz esta história sair de um filme de ficção, ou melhor dizendo, de uma narrativa real saída de uma fantasia impensável. Por tudo isto, é mesmo impossível deixar a história de Carlos Kaiser ganhar pó nas estantes dos «livros ultrapassados». Esta foi a carreira do futebolista que queria saber de tudo... menos de bola.
«Já que era obrigado a estar no futebol, eu aproveitava, não é? Até casar pela primeira vez eu era como o Michael Douglas, o ator, que tinha uma adição pelo sexo».
[Para mais histórias como a de Carlos Kaiser consulte este artigo]