Rivalidade ancestral, secular, debruada no azul e branco em listas verticais e no verde branco de riscas horizontais. Tantas memórias.
O primeiro clássico registado nos arquivos do futebol nacional data de 4 de junho de 1922, há precisamente 100 anos. Em Portugal, o desporto-rei é uma criança ainda a gatinhar, pueril e inocente, quando Porto e Sporting discutem numa final a duas mãos o campeão de Portugal.
Ganham os dragões por 2-1, em dia de Senhor de Matosinhos e romaria apressada ao Campo da Constituição, segundo reza o Almanaque do FC Porto, de Rui Miguel Tovar.
São precisos 22 anos e uns passos tremelicantes rumo ao semi-profissionalismo até ao primeiro duelo entre estes grandes senhores para a Taça de Portugal.16 de abril de 1944, oitavos de final da prova rainha discutidos a duas mãos. No Porto, mais particularmente no Estádio do Lima, ganham os azuis e brancos por 2-0. Em Lisboa, sete dias depois, três golos para cada lado e seguem os nortenhos em frente.
Quem são os primeiros heróis de uma eliminatória FC Porto-Sporting para a taça?
Esqueçam os salários abastados, os estágios, os tiques de vedeta desenhados em tatuagens intermináveis e brincos xpto. Esta gente, estes futebolistas, são o cidadão mais comum representado num campo de terra batida.
Joelhos feridos, olhos esgotados, equipamentos rudimentares, mas aquela paixão que só o futebol nos consegue dar.
Agora, os artistas. Manuel Belo Correia Dias é o autor do primeiro golo de sempre em clássicos a contar para a Taça de Portugal. Nesse tal 2-0, o saudoso avançado faz o 1-0 e o madeirense Pinga, o primeiro craque madeirense do futebol nacional – à atenção de Cristiano Ronaldo – é o autor do 2-0.
Correia Dias. Numa era em que os jornais chegam às tabacarias dia sim dia não e em que a urgência noticiosa é saciada pela telefonia, o corpulento atacante de 103 quilos incorpora na perfeição o epíteto «jogar por amor à camisola». Mais do que ultrapassado, como se sabe.
Nascido em Ovar, Correia Dias acompanha a jorna familiar numa empresa produtora de cereais. É daí que retira o provento mensal e o sustento da casa. Daí a sua absoluta surpresa quando é confrontado, em 1948, com a possibilidade de passar a ser futebolista profissional.
«Agora, posto o problema da disciplina e das obrigações, considerada necessária a minha inclusão na equipa do clube, nestas condições, acedi e ganho. Pronto.»
E pronto. Correia Dias joga de 1939 a 1948 a acumular futebol e negócio familiar, e prova a exigência do profissionalismo apenas no ano do adeus aos pelados: 1948/49.
A despedida dá-se a 16 de janeiro de 1949, contra o Olhanense, na Constituição. Para trás, porém, deixa números impactantes. Não só na altura e no peso.
De acordo com o Museu do FC Porto – e confirmado na base de dados do zerozero -, Correia Dias é ainda o oitavo melhor marcador de sempre dos dragões, atrás apenas de sete outros monstros sagrados: Fernando Gomes, Hernâni, Mário Jardel, Teixeira, Pinga, Domingos Paciência e Araújo.
Uma personagem obrigatória e decisiva nesse primeiro FC Porto-Sporting da Taça de Portugal.
Se fosse vivo, Correia Dias teria 103 anos. O gigante bom deixou uma imagem nada condizente com a extraordinária compleição física.
Onde muitos poderiam adivinhar um brutamontes sem modos, todos descobriam um coração mole e um sorriso inabalável.
«Oh Correia Dias
Comes papas frias»
A cena é relatada por um antigo vizinho, Luís Nogueira. Heroísmo, bondade, humanismo absoluto de um homem que deixa uma marca profunda na história do FC Porto.
Cinco vezes campeão distrital do Porto, melhor marcador do campeonato nacional 1941/42 com 37 golos, 122 jogos e 113 golos ao longo de todo o percurso.
Dias inesquecíveis? Esse contra o Sporting e a histórica vitória sobre o todo-poderoso Arsenal, no Lima, a 7 de janeiro de 1948: 3-2 para o FC Porto e dois golos de Correia Dias, um gigante de 103 quilos.