Traído pelo período negro do Benfica, amargurado por praticamente não levar títulos, reticente por não ter podido ir para o Real Madrid, triste por terminar quando, lá no fundo, achava que ainda podia continuar mais um pouco. A passagem de Michel Preud'homme pela Luz, última paragem de uma carreira sénior de 22 anos, até podia ter uma grande nuvem negra, mas não. Muitos anos depois, continua a ser visto como um símbolo do clube e um dos melhores que já calçaram as luvas no Benfica e no futebol português.
Quando, em 1994, após 17 épocas na primeira divisão belga, decidiu não seguir e procurar uma aventura no estrangeiro, já o seu nome era muito respeitado, pois tinha sido duas vezes eleito melhor jogador do campeonato (na altura, bem mais forte do que nas décadas seguintes), tinha ganho duas competições europeias (Taça das Taças em 1988 e Supertaça Europeia a seguir) nos anos dourados do Malines (Mechelen) e era o dono da baliza da Bélgica, como herdeiro de Jean-Marie Pfaff, mas... tinha 35 anos. Esse era o maior receio dos adeptos encarnados quando começaram a ouvir falar da hipótese.
O Benfica tinha acabado de ser campeão nacional e na retina ainda estava a incrível exibição de João Vieira Pinto em Alvalade, nos 3x6. Ainda assim, continuava a ser um clube em claras dificuldades financeiras, mesmo com a ida à Liga dos Campeões na época seguinte (na altura, os milhões não eram assim tantos). Rui Costa saiu para a Fiorentina, Schwarz foi para o Arsenal, Yuran e Kulkov fugiram para o FC Porto. Manuel Damásio procurava uma equipa competitiva para dar soluções ao novo treinador, Artur Jorge, que tinha a missão de dar nova dimensão europeia ao clube.
Só que, nessa altura, já Luciano D'Onofrio, reputado agente de jogadores da altura e representante do guarda-redes, tinha tudo acertado com os encarnados, com a concordância do jogador, entusiasmado pela escolha de um país como Portugal e de um clube histórico como o Benfica. Havia ainda, entretanto, um Mundial pelo meio. E melhor era difícil...
Preud'homme encantou o mundo com exibições memoráveis na fase de grupos, incluindo na vitória contra a poderosa Holanda, e levou a Bélgica à fase a eliminar, onde só caiu perante a Alemanha (3x2). No fim, não houve dúvidas por parte da FIFA: Preud'Homme foi eleito o melhor guarda-redes do Mundial e chegaria a Lisboa com o rótulo de melhor do mundo. E, se isso era algo relativo, considerá-lo na melhor fase da carreira era totalmente legítimo.
«Nem essa eleição chegou. Os jornalistas e os adeptos olharam para a minha idade e não quiseram saber de mais nada. Todos diziam: o gajo era bom mas está velho. Só vinha para o Benfica preparar a reforma. Acho que em cinco temporadas provei precisamente o oposto. Deixei de jogar aos 40 e por mim continuava mais uns anitos (risos)», contou, mais tarde, em entrevista ao MaisFutebol.
Foi uma espécie de amor à primeira vista... e misturado com dissabores coletivos. Começou a perder a Supertaça para o FC Porto em Coimbra, nos penáltis, esteve na campanha da Liga dos Campeões que levou as águias até aos quartos de final, só que a temporada acabou mal.
«O que eu mais queria era Itália, porque sabia que lá era muito apreciado, tinha Milan, Torino e Brescia a seguirem-me. Era o campeonato mais bonito do mundo na altura e era perfeito para um guarda-redes com a minha idade. Havia outros clubes interessados, como o FC Porto, o Nottingham Forest e o Bordeaux. Mas o problema era sempre o mesmo: o número de estrangeiros. Foi então que surgiu o Benfica, com Artur Jorge como novo treinador, que disse: 'Os outros treinadores preferem contratar avançados, eu, primeiro, quero ter um bom guarda-redes'», explicou o guarda-redes, sobre o treinador, que sempre esteve limitado por uma intervenção cirúrgica a que foi submetido no começo da época, e que sairia no início da seguinte.
1995/96 também começou mal e o técnico não duraria muito, mas Mário Wilson haveria de reerguer a equipa, que acabou no segundo lugar e que ganhou a Taça no Jamor ao Sporting por 3x1. Nessa altura, já ninguém tinha dúvidas: não havia melhor do que Preud'homme. Nem mesmo os colegas. Nem mesmo... o grande concorrente, Neno.
«Era um grande campeão. Tinha conquistado o título, eu cheguei e ele perdeu o lugar. Nem assim reagiu mal. Aceitou-me, tornou-se meu colega de quarto nos estágios e um amigo verdadeiro. Grande pessoa, um tipo excecional».
Em 1996, o telefone tocou. Michel tinha 37 anos e pouco podia prever que a chamada viesse do país vizinho: era Fabio Capello, acabado de chegar ao Real Madrid, pronto a convencê-lo a rumar ao Santiago Bernabéu.
«Aos 37, é fabuloso! Tinha mais um ano de contrato com o Benfica, o Real tinha apalavrado dar-me três. Só que o Benfica disse-me: 'Nesta situação, se não conseguirmos trazer um grande nome, os sócios matam-nos'. Andaram a tentar o Chilavert, se ele viesse, eu ia para o Real, mas isso não aconteceu e acabaram por contratar o Bodo Illgner. Foram campeões e ganharam a Liga dos Campeões na época seguinte. Imaginem se eu tivesse ido...», registou, ao Yahoo, numa entrevista de carreira.
Não foi, ficou e não se arrependeu. A ligação umbilical fortaleceu-se, e de que maneira. Na época seguinte, foi a vez do Fluminense, mas aí foi o próprio jogador a dizer que não.
«A ligação foi-se desenvolvendo e tornou-se muito grande. Após três anos e meio, findo os quais se colocou a possibilidade de sair, eu optei por ficar. Tomei, aliás, a decisão de viver aqui, no vosso país. O Benfica é, sem dúvida, o maior dos três clubes que representei. Tem uma dimensão impressionante e mexe com as pessoas de uma forma que não acontece na Bélgica. Merecerá sempre a minha preferência».
Quando acabou a carreira, após uma época em que disputou o lugar com Ovchinnikov (o único com quem teve algumas divergências), ficou ano e meio como dirigente e até foi ele um dos responsáveis pela escolha de José Mourinho. Saiu pouco depois, com a mudança de direção, e abraçou a carreira de treinador, também com grande sucesso.
Nota: um agradecimento ao Filipe Inglês (Bakero) pela preciosa contribuição na elaboração do texto