130 dias. 130 longos dias que separaram o final da temporada 2022/23 e o início da época 2023/24 para a vasta maioria dos jogadores que disputam o Campeonato de Portugal. Caso particular em Portugal, o quarto escalão apresenta o interregno mais extenso entre épocas, isto para quem não disputa a fase de subida. Um ciclo que se repete nas duas últimas edições, depois de a fase de manutenção ter sido descontinuada.
Assim, para centenas de jogadores o último jogo da temporada realizou-se a 7 de abril. Mais cedo ainda do que na época anterior, que terminou no dia 16 do mesmo mês, mais de cinco meses antes de, a 19 de agosto, ter sido dado o pontapé de saída para uma nova edição. A história está prestes a repetir-se e o verão adivinha-se longo e pautado pela incerteza, aquela capaz de apertar o peito a quem ainda não sabe com o que contar em 2024/25.
Rendimentos, forma física ou até mesmo a sanidade mental. Neste jogo tudo se perde e pouco ou nada se ganha. O zerozero partiu à descoberta dos efeitos de uma paragem tão longa nos que a sofrem na pele: os jogadores.
Rafa Pinto é já um veterano nestas andanças. Aos 25 anos, o médio ofensivo não conhece outra realidade que não a do Campeonato de Portugal desde que fez a passagem para o futebol sénior, em 2017. Viveu a prova com e sem fase de manutenção, pelo que fala com conhecimento de causa.
«Não há nada positivo em terminar a época tão cedo», contou-nos. «Antes, quando havia o formato em que existia primeira fase e depois as fases de subida e manutenção, também existiam defeitos e acho que quiseram acabar com isso. Fazia com que muitos clubes deixassem de pagar na primeira fase e só investissem na fase de manutenção, ou que ficassem a época toda à espera dessa fase. Penso que a FPF quis acabar com isso e proteger o jogador», argumentou o criativo, que representou o Lusitano de Évora na segunda metade da temporada.
Uma proteção do jogador que acaba por lhe causar problemas extra, na visão do atleta. «Ao acabar assim tão cedo, o jogador acaba por ficar três meses sem receber, o que é muito tempo, e fica parado. Um jogador que tenha ficado nesta primeira fase, sem jogar fase de subida, e que para o ano até possa dar o salto para uma Liga 3... Faz muita diferença estares parado três meses e outro jogador só estar parado um mês.»
O último argumento aguça-nos o apetite: o jogador sente na pele diferenças geradas pela longa paragem no que toca às movimentações de mercado? «É inevitável que um clube de Liga 3 ou II Liga que queira vir buscar um jogador ao Campeonato de Portugal olhe para isso. Mas também não têm outra opção: ou contratam um jogador de fase de subida ou todos os outros estiveram parados três meses», disse-nos.
«Fica difícil negociar e muitos jogadores saem prejudicados, no sentido em que acabou agora a temporada e há muitos clubes que já fazem telefonemas para renovar ou contratar. É muito cedo para dizermos que sim. Um jogador acaba por estar sempre à espera de algo melhor que possa aparecer, só que ainda estamos em abril e já há clubes a exigir uma resposta até maio, por exemplo. É muito cedo. Ou o jogador perde essa oportunidade e mais à frente pode não ter algo tão bom, ou então diz já que sim e depois aparece algo melhor e não se pode desvincular. Saímos prejudicados nesse aspeto», confessou ainda o médio sobre as questões negociais.
As dores de Rafa Pinto representam as de muitos outros. Luís Elói, extremo que representou o Oriental esta temporada, identifica-se com tudo isto. «É difícil em vários contextos. Inevitavelmente, perde-se a forma física porque é muito tempo parado. Depois, a nível financeiro, a maior parte dos clubes paga nove meses, os de competição. Ficamos em casa três meses, mais um depois em que se começa a treinar... São quatro meses sem receber. É inevitável que tenhamos que procurar algo fora do futebol, sobretudo quem vive dele», confessou.
A história de ambos também converge neste ponto e a longa paragem abre a porta de um outro mundo profissional. No caso de Elói, já está ao trabalho para fazer face aos meses em que os relvados não providenciam o ganha-pão. Rafa Pinto espera seguir o mesmo caminho: «Já estive a mandar currículos, estou à espera que me chamem.». Para estes dois, como certamente para muitos outros, as férias do futebol trazem tudo menos descanso.
Voltemos a focar na questão do mercado, altamente volátil e capaz de levar ao desespero neste contexto. O facto de a época terminar muito cedo para a maioria dos clubes leva a um planeamento atempado do ano seguinte, o que significa exigir respostas cedo, mas também que os lugares em aberto se tornem escassos para aqueles que ainda têm uma fase de subida para jogar.
«Isso aconteceu-me quando estava no Sertanense e fomos à fase de subida», contou-nos Rafa Pinto. «A Liga 3 até acaba primeiro. Senti que fiz uma grande época e podia dar o salto, mas quando acabou a minha temporada, já só faltava um mês para começar a pré-época outra vez e a maioria dos clubes tinha tudo definido. Não consegui Liga 3 e mesmo no Campeonato de Portugal foi em cima da hora. Para um jogador que foi à fase de subida, fez uma boa fase e só ficou atrás do Belenenses, estar a uma semana de começar a pré-época e não ter clube... O pior da paragem é a saúde mental do jogador.»
Pumba, abriu-se a caixa de pandora. Num mundo por si só imprevisível, onde carreiras começam e acabam num pestanejar, o contexto muito particular do Campeonato de Portugal é um desafio acrescido à sanidade mental dos jogadores. Como em tudo na vida, há quem lide melhor e há quem não passe sem ajuda.
«Para os jovens, que talvez fiquem em casa os três meses à espera que o telefone toque, é horrível. É estar três meses sem treinar, sem ter a parte do balneário e sem saber se o telefone vai tocar. Isso é o pior. Nesse ano do Sertanense, eu não parava de olhar para o telemóvel, ele não tocava e eu não percebia. No ano passado, estive na UD Santarém e não fomos à fase de subida, que era o objetivo. Sofri muito. Olhei para tanto tempo que ia ter e não sabia o que fazer. Comecei até a frequentar uma psicóloga e isso ajudou-me», revelou Rafa Pinto.
Luís Elói, cuja carreira contempla uma passagem pela formação do Sporting, consegue perceber muito bem esta dor: «Já é o terceiro ano em que estou nesta situação. Nos primeiros fiquei assustado. Os meses iam passando e eu sempre fui um jogador que, se calhar, já tinha alguma coisa acordada mesmo antes de fechar a época. Daí para cá, as coisas só começam a aparecer muito em cima do começo da temporada. Nesses meses ficava assustado. Ninguém ligava, os outros campeonatos estavam prestes a começar e para nós, a maior parte dos jogadores do Campeonato de Portugal, demoravam a chegar os convites.»
Sem a rotina diária que a temporada proporciona, para Rafa Pinto os tempos são de «fazer um pouco de praia» e «passear» na zona de Cascais, de onde é natural. É assim que vai ocupando o tempo enquanto o telefone não toca com a ansiada chamada para ir trabalhar, mas até isso se torna cansativo.
«Às tantas, não sabemos o que fazer. Fazemos isso um dia, fazemos no dia seguinte e quando damos por nós ainda só passou uma semana. Já passei dois anos nesta situação e agora tento combinar mais coisas com antigos colegas que não sejam da zona. Passa por aí, tentar estar distraído. Mas também é difícil, porque não vamos estar sempre a combinar almoços, jantares e saídas quando não está a entrar rendimento», atirou.
Luís Elói já se encontra a trabalhar, de forma a enfrentar as despesas enquanto aguarda que a bola volte a rolar. «As contas e a barriga não se alimentam com pensamentos. No meu caso, que vivo do rendimento do futebol, é inevitável que tenha que procurar algo. Procuro sempre trabalhar», confessou.
A terminar, ambos partilham de uma opinião: é preciso mudança. «Era muito preferível [ter a fase de manutenção], pela parte financeira e também física. Para muitos clubes até é melhor acabar já. Sabem que não sobem nem descem e é sempre menos dinheiro que gastam. Preferem assim, até porque se houver fase de manutenção arriscam-se a descer e têm que investir mais. É triste, mas é a realidade que temos», desabafou Rafa Pinto.
Elói subscreveu a opinião e manifestou também o desejo de uma nova competição: «Há clubes que até dá mais jeito acabar mais cedo, porque não têm tanta despesa. Devia haver uma competição até final de maio ou início de junho, porque é muito tempo parado.»
O pano baixou para a maioria dos artistas. Os malabarismos com a bola ficam agora encostados na prateleira durante os próximos meses, até regressar a azáfama, e dão lugar ao trabalho convencional.
«As contas e a barriga não se alimentam com pensamentos.»