Desde a queda basca (1984 foi o último título do Athletic) e até à chegada do Atlético de Simeone passaram-se quase três décadas e, nessas, quase sempre Real Madrid e Barcelona tiveram o domínio de Espanha. Um caso aqui, outro acolá, nunca nada significativo e verdadeiramente consolidado para fazer tremer a hegemonia a dois, que ora era mais blanca, ora mais culé. Só houve uma exceção: o Valencia que virou o milénio. O palmarés realça dois títulos de campeão, mas aí não aparecem as duas finais de Liga dos Campeões, exemplificativas de que, naquela altura, era realmente uma das melhores equipas da Europa.
A história demonstra um Valencia com uma tendência natural para o abismo, quase sempre por culpa própria (e, mesmo naquela altura, foram vários os percalços diretivos), o que impedem o Mestalla de ser consecutivamente a terceira maior força do país. Também por isso, aquele período entre 1998 e 2004 foi diferente, especial. É que a devoção de uma das mais acérrimas massas adeptas de Espanha teve finalmente um período de correspondência em campo. E que bom foi aquela demonstração de força...
Não se pense que o Valencia não tinha já sido um clube vencedor. Nos anos 40, fora três vezes campeão nacional, duas delas com a II Guerra Mundial em andamento. Porém, andava à deriva. No início da década de 70, foi campeão a quarta vez, no fim dessa década a conquista da Taça deu acesso à Taça das Taças, que seria ganha (1980), antes de um longo período de seca.
Problemas diretivos, dificuldades em acompanhar a evolução do profissionalismo e várias apostas falhadas. As razões são muitas e discutíveis, a realidade foi muito cruel: o clube desceu mesmo de divisão, em 1986 (subiria no ano seguinte), e atravessou o deserto em praticamente duas décadas sem expressão. Mesmo que por lá tivessem passado Madjer, Penev, Leonardo, Mijatovic, Mazinho, Zubizarreta ou Romário, além dos treinadores Carlos Alberto Parreira, Guus Hiddink ou Luis Aragonés, e mesmo que a equipa fosse competitiva, situando-se normalmente nos primeiros oito, ficava a sensação de ser sempre curto para que os títulos chegassem outra vez. E a sensação tinha fundamento, porque foram 19 anos sem nada - não contando com a conquista da segunda divisão.
Quando, em 1998, Claudio Ranieri chegou para suceder a Jorge Valdano, deu-se o começo de uma mudança. Nos anos anteriores, o clube tinha passado a comprar com frequência jogadores estrangeiros e esquecera a cantera, o que o italiano procurou reequilibrar. Mendieta era o grande exemplo de jogador com potencial vindo da formação do clube, mas Ranieri começou também a potenciar outros, como Albelda, Angulo ou Farinós.
Desengane-se quem pensar que foi uma época deslumbrante. O 4.º lugar no campeonato mostrava que ainda era curto para ameaçar o título, tal como a precoce saída de cena na Europa, mesmo com a conquista da Taça Intertoto. O grande voo do morcego foi na Taça do Rei! Aliás, se este texto tivesse começado com as eliminatórias épicas nesta prova, também seria oportuno: contra o Barcelona, nos quartos, vitória por 2x3 em Camp Nou e depois triunfo por 4x3 em casa; contra o Real Madrid, nas meias, inesquecível 6x0 no Mestalla e depois derrota por 2x1 no Santiago Bernabéu. Na final, 3x0 em Sevilha ao Atlético de Madrid e a confirmação de um dos mais impressionantes trajetos da história da taça.
O campeonato começou de forma terrível, com quatro derrotas a abrir, que deixaram difícil a tarefa de ambicionar o título - escaparia para o surpreendente Deportivo, por cinco pontos. E houve a Liga dos Campeões. Era apenas a segunda vez em toda a história que o clube participava na maior prova europeia, mas não fez por menos: passou a primeira e a segunda fase de grupos, eliminou a poderosa Lazio (que seria campeã de Itália nesse ano) com um jogo impressionante de Gerard no Mestalla (5x2) e, nas meias-finais, superaria o Barcelona outra vez - os che eram uma autêntica ovelha negra. A final era contra o Real Madrid, só que aí faltou algo (e Carboni) e a derrota foi pesada (3x0).
A primeira foi dura, a segunda foi desesperante. Tão perto do céu, o voo do morcego desceu à terra de forma cruel.
Cúper saiu para o Inter no verão de 2001 e ao Mestalla chegava um jovem treinador chamado Rafa Benítez, que veio do Tenerife. Consigo trouxe o jovem Mista e o recuperado Curro Torres e chegaram também Marchena, Rufete e Salva. Um mercado apenas interno, sem loucuras e no qual a equipa perdeu o símbolo Mendieta para a Lázio.
Num campeonato muito renhido, só à 24.ª jornada o Valencia subiu ao primeiro lugar (com os oito primeiros separados por... quatro pontos). O grande adversário era o Real Madrid (cheio de Galácticos) e a indefinição pautou as últimas 10 rondas, só que uma ponta final fortíssima dos che e tremida dos merengues fez com que o título nacional chegasse, mais de 30 anos depois, ao Mestalla.
Tudo podia sugerir mudanças no verão de 2003, só que o clube optou pela continuidade. E Cañizares, Ayala, Pellegrino, Carboni, Albelda, Baraja, Rufete, Mista, Angulo, Aimar e Vicente iam para mais uma época juntos. Ou sucumbiriam à falta de um novo desafio, ou cria-lo-iam internamente.
Dificilmente podia ter sido melhor...
Há muito que a fasquia tinha subido. Já não era aquele Valencia inconstante da década de 80 nem o insuficiente da década de 90. Desta geração dourada, os adeptos esperavam o mundo. E foi um pouco isso que aconteceu em 2003/2004.
Não seria, porém, essa a única alegria para os adeptos. Na Taça UEFA, houve capacidade para conciliar o calendário com o campeonato sem beliscar objetivos. Etapa a etapa, com alguma felicidade no sorteio, e com uma vitória no improvável dérbi contra o Villarreal nas meias-finais, o derradeiro jogo chegou, em Gotemburgo. Frente ao Marseille, do experiente Barthez e do jovem Drogba, a vitória chegou por Vicente e Mista. Aliás, a época foi tão pujante que estes dois jogadores, tal como Baraja ou Marchena, atingiram em 2003/2004 os melhores números das respetivas carreiras. Um dado suplementar: para o Euro 2004, o Valencia foi o clube com mais jogadores na seleção espanhola (cinco).
Foram as últimas conquistas de Rafa Benítez, idolatrado como muito poucos na história do clube. Anfield e a Premier League por ele chamaram e os seus rapazes ficaram órfãos de um líder no banco - em campo era Albelda, claro.
Os reforços, quase todos com a bandeira italiana (Carboni só houve um), não foram a soma que se esperava, com exceção para Di Vaio. Além disso, a dificuldade de reinvenção dos processos de jogo, a sensação de objetivo cumprido e dificuldade de definir novas metas, a acrescentar à feroz concorrência dos maiores clubes de Espanha, fizeram com que o pós-apogeu fosse de quebra. Em 2004/2005, ficou pela fase de grupos da Liga dos Campeões e em sétimo lugar no campeonato. Mas, desta vez, não houve retoma. E o clube voltou a quebrar, mesmo que com David Villa a tentar desesperadamente dar seguimento à glória. Em vão... A fase dourada tinha chegado ao fim.