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Entrevista ao atleta do Beijing Guoan - Parte II

Guga e a saída do Benfica: «Parecia que me viam como um aleijado»

O centro de Pequim é uma janela para o pensamento de Guga Rodrigues. Recém-transferido para o Beijing Guoan, o médio formado no Benfica recorda os dias de criança em Vila Real de Santo António e o trauma das lesões já nos primeiros anos de sénior no Benfica. Revelações duras. 

A grande entrevista de Guga ao zerozero está dividida em duas partes. Nesta segunda metade, o ex-Rio Ave recorda os 11 anos ao serviço do Benfica e a saída de casa dos pais, no Algarve, com apenas 12 anos. A ligação às águias correu pelo melhor, até à fase em que as lesões - três e todas graves - impediram o derradeiro passo para a equipa principal.  

PARTE I: «Provei que estava pronto para jogar nos três grandes»

zerozero - É natural de Vila Real de Santo António, no Algarve. Fale-nos da sua família e dos primeiros anos de vida. 

Guga Rodrigues - Nasci em Faro, mas a minha casa era em Vila Real. Cresci ao lado de Espanha, com praia, foi muito bom. A minha infância resumiu-se ao futebol. O meu pai e o meu avô estavam ligados à modalidade, e integrei-me facilmente no jogo. Fui para o Lusitano VRSA com três ou quatro anos. Aos oito fui visto pela prospeção do Benfica no Algarve, pelo Pedro Lourenço, e o clube mostrou interesse em mim. Conheci aí o Bruno Maruta, o Rodrigo Magalhães, pessoas do Benfica e que foram importantes na minha transição do Algarve para Lisboa. Comecei nas captações no Estádio da Luz, mas eu era muito novo e fui jogar para o Ferreiras, que tinha um centro de formação organizado pelo Benfica. 

zz - Que idade tinha aí? 

GR - Tinha oito anos. O objetivo era trabalhar já com os métodos do Benfica e ao lado dos melhores do Algarve da minha idade. Os melhores ingressariam mais tarde no clube, em Lisboa. Eu e o Diogo Gonçalves, que agora está no FC Kobenhavn, estivemos sempre juntos na formação. Partilhámos quarto e casa. No ano a seguir já treinava no Algarve e jogava em Lisboa. Aos 11/12 anos mudei-me mesmo para a academia do Benfica. E fiz o percurso normal, até chegar à equipa B do Benfica. 

zz - Que profissões têm os seus pais? 

GR - O meu pai tem uma escola de guarda-redes e é carteiro. A minha mãe atualmente está desempregada. 

qNunca tive posters no quarto, mas sempre tive um jogador favorito e este ano só não joguei contra ele porque tive uma lesão. Refiro-me ao João Moutinho, outro algarvio
Guga Rodrigues
zz - Fale-nos da escola de guarda-redes do seu pai. Ele jogou à baliza?

GR - Sim, sim. Foi guarda-redes do Lusitano, do Beira-Mar de Monte Gordo e sempre teve o gosto pelo treino. Criou a Escolinha de Guarda-Redes Luís Rodrigues. O meu pai nunca me incentivou a ser guarda-redes e eu nunca olhei para essa posição com desejo (risos). Ainda hoje ele me ajuda, no futebol e na vida. Os meus pais são a base disto tudo. 

zz - No zerozero temos a indicação de que o seu irmão André é guarda-redes também. 

GR - Já não é, mas foi. Começou na escola do meu pai, foi para o Lusitano e depois mudou-se para a Académica. Nem toda a gente pode ter sorte, fez a escolha dele e apostou numa outra vida. Mais tarde poderá voltar ao futebol, por paixão. 

zz - Quais eram os sonhos do pequeno Guga?

GR - Não posso fugir muito à resposta: jogar futebol. Não diria logo no início, porque aí não temos noção do que é a vida. Mais tarde, já no Benfica, comecei a perceber qual poderia ser o nosso caminho. Lembro-me de estar sentado a falar com os meus pais e a dizer-lhes que não estava a conseguir ter bons resultados escolares. 'Estou a sentir que tenho capacidades para ter uma carreira profissional e quero dedicar-me 100 por cento a isto'. E assim foi. O sonho tornou-se real muito naturalmente. 

zz - O Guga saiu de casa dos seus pais aos 11/12 anos. Como é que eles reagiram ao ver a criança deles a mudar-se para a capital? 

GR - A mim não me custou, porque fui fazer o que mais gostava e viver com amigos meus na mesma camarata. Para os meus pais deve ter sido complicado. Com 12 anos... só posso dar os parabéns ao Benfica, porque o clube deu-me todas as condições, escolares e de educação, para ser feliz. Os meus pais foram importantes, mas numa fase determinante da vida foi o clube a dar-me todo esse acompanhamento. 

Guga Rodrigues
2024
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zz - Quais eram os ídolos que estavam colados em posters na parede do seu quarto? 

GR - Nunca tive posters no quarto, mas sempre tive um jogador favorito e este ano só não joguei contra ele porque tive uma lesão. Refiro-me ao João Moutinho. Também é algarvio e sempre olhei para ele como referência. 

zz - Com tanto futebol nessa casa, para onde pendiam os corações? Farense, Olhanense, Porto, Sporting, Benfica?

GR - Estava tudo muito misturado (risos). Claro que quando cheguei ao Benfica as pessoas começaram a ter um carinho especial pelo clube. Passou a ser a minha casa e sempre me ajudou nas horas difíceis. Vai ficar sempre um carinho especial. 

zz - Foram 11 anos no Benfica. Não devem faltar boas histórias com essa irmandade do Seixal.

GR - Tenho muitas histórias, claro. Rebeldia, brincadeira, algumas boas chatices. Na altura não foi bom, mas estávamos ali fechados, saíamos só para a escola e depois treinávamos. Não éramos umas crianças diferentes, queríamos brincar e tivemos alguns castigos. Foi engraçado, vivi lá alguns dos melhores momentos da minha vida. 

zz - O Guga era dos mais calminhos ou dos mais rebeldes? 

GR - Era dos mais rebeldes, mas os meus pais nunca sabiam de nada (risos).  

zz - Há alguma história boa por contar? 

GR - Na altura do Natal, a minha geração ficou lá mais uns dias porque estava a preparar um torneio. O resto da malta tinha ido de férias para casa. A academia estava vazia, a comida nesse dia não nos encheu as medidas e fomos aos quartos uns dos outros, à procura de mais. Não havia nada. 

zz - E lembraram-se de fazer o quê?

GR - A cozinha já estava fechada. Fomos «assaltar» a cozinha do centro de estágios. Cereais, sumos, bolachas... e viemos para o quarto. Não estávamos satisfeitos e quisemos ir lá outra vez. E aí fomos apanhados. O segurança estava a dar a ronda e apanhou-nos encapuçados. Cachecóis, camisolas à volta da cara para ninguém nos reconhecer nas câmaras, mas claro que fomos apanhados. Ficámos de castigo. Lembro-me que o treinador era o Luís Araújo e ele pôs-nos a preencher folhas. 'Eu não volto a roubar o centro de estágio...'. 

@Catarina Morais / Kapta +

zz - Fazer a formação no Benfica, como o Guga, facilita a aproximação ao sucesso?

GR - Nem toda a gente vai chegar à equipa principal - ou às equipas principais dos grandes -, mas as formações tática, humana e individual têm de ser aproveitadas. Há muitos caminhos para chegar lá acima, não é só pela via dos grandes. Há muitos exemplos de jogadores formados nos grandes, que saem e depois voltam lá acima outra vez. É importante aproveitar, ouvir o que os treinadores têm para dizer, aprender com os melhores.  

zz - De todos os colegas que teve no Seixal, quais os que mais o impressionaram pela qualidade? 

GR - A minha geração sempre foi muito boa. Eram chamados 11 à seleção e nove costumavam ser titulares. O Renato [Sanches], o Rúben [Dias], o Diogo [Gonçalves], o Yuri [Ribeiro], o Pedro [Pepê] Rodrigues, o João Carvalho, o Ferro, o Buta, o Pedro Amaral, todos estão a fazer carreiras internacionais. Nunca ganhámos nada a nível coletivo nas seleções, apanhámos sempre adversários fortes, mas no Benfica fomos campeões no segundo ano de iniciados [sub14], fui também campeão nos juvenis de segundo ano com o Renato Paiva. Nos juniores nunca conseguimos ganhar nada, porque o Benfica tinha como prioridade, e bem, colocar esses jogadores a trabalhar nos sub23 e na equipa B, para formar mais rapidamente. Apanhei muitos bons jogadores, mesmo de gerações mais novas. O João Félix, por exemplo, ainda apanhei na B. Depois é uma questão de ter sorte nos timings. 

zz - O Guga sempre elogiou o treinador Renato Paiva. 

GR - Sim, conheci-o nos juvenis de primeiro ano e o Renato chamou-me para a equipa principal um mês depois do início da época.  Fiz logo um jogo contra o Belenenses, lembro-me bem, e ele durante a semana disse-me que não havia mais médios defensivos. Nessa altura eu jogava como '6'. 'O Guga está aqui, vai treinar connosco e se treinar bem vai jogar, porque não temos ninguém para essa posição'. Joguei e fiz um grande jogo (risos). 'Tu agora já não sais mais daqui'. Fiquei na equipa dele e joguei sempre. Foi um treinador que me deu muito, acompanho a carreira dele, já ganhou um título internacional e fico feliz pelo trajeto que o mister Renato está a fazer. Também para os treinadores o trajeto nem sempre é o óbvio.  

zz - Tem 52 internacionalizações até à Seleção Nacional de sub19. Em que altura as lesões começaram a limitá-lo? 

GR - No meu primeiro ano de equipa B. Cheguei do Europeu de sub19, que perdemos na meia-final com a França do Mbappé, e senti que não ia ser das primeiras opções do mister Hélder Cristóvão. O desafio que coloquei foi simples: num mês tenho de ser titular desta equipa. Assim foi. Nessa altura até comecei a treinar com o Rui Vitória na equipa principal. Disse-me que a ideia dele era mesmo que eu subisse à equipa A. Eu estava bem na equipa B, a jogar, e num treino sofri a primeira lesão. Foi tudo por água abaixo. 

zz - Lesão no joelho? 

qEstive mais dez meses de fora, a recuperar. Durante essa recuperação, também parti o pé. Na altura não foi publicado, mas agora podemos falar sobre isso. 
Guga Rodrigues
GR - Sim, foi no joelho. Fiz a minha recuperação normal, em cerca de seis meses. Muita gente não sabe bem o que passou, mas hoje posso falar sobre isso. No final do ano ia haver o Mundial de sub20, eu estava convocado e tinha de fazer x jogos até ir para o Mundial. Havia uma progressão estabelecida: primeiro 20, depois 30, mais tarde 45 minutos. Por alguma inexperiência de minha parte, no primeiro jogo que fiz após a lesão, contra o FC Porto [2-1, 23 de abril de 2017], devia ter jogado 20 minutos e joguei 40. Tinha feito uma recuperação boa, sentia-me bem, mas seis meses para uma plastia a um joelho é muito pouco. Neste momento, os jogadores fazem oito ou nove meses de paragem. Fui para o jogo e no último minuto senti novamente o ligamento a romper. 

zz - Recuperação arruinada. 

GR - Estive mais dez meses de fora, a recuperar. Durante essa recuperação, também parti o pé (risos). Na altura não foi publicado, mas agora podemos falar sobre isso. Já estava pronto para jogar, tinha o aval médico e parei mais três meses. O que tiro disto tudo? Foram três lesões gravíssimas num espaço de dois anos e não tive um dia em que dissesse 'não consigo'. Fui sempre para os tratamentos com uma cara contente, motivado. Essa foi a minha maior conquista e não os títulos no Rio Ave, a subida e a eleição de melhor jogador da II Liga. Tinha 19/20 anos, não foi fácil. Há muita gente que me vê a jogar e não sabe que tive lesões. 'A sério que estás com este nível e tiveste essas lesões todas?'. 

zz - Na época 2017/18 não fez um único jogo.

GR - Certo, nem um jogo. O Benfica nem me inscreveu na primeira metade da época, para não haver uma pressa de minha parte para poder jogar mais cedo. Fui inscrito em janeiro de 2018, comecei a treinar e tive a lesão no pé. Só recomecei no verão de 2018, com o treinador Bruno Lage. Tive a noção de que não estava ao nível desejado, ainda fui aos sub23 ganhar confiança e depois mudei-me para a Grécia [Panetolikos]. Esse empréstimo foi determinante na minha carreira. 

zz - Fale-nos dessa mudança. Como é que surgiu a Grécia a meio do seu percurso? 

GR - Tinha a expetativa de recuperar o meu espaço na equipa B e, a correr tudo bem, voltar a conviver com a equipa A. Nessa pré-época não estava ao nível que queria estar. Nesses seis meses senti que as pessoas diziam 'cuidado que ele esteve lesionado'. Não por mal, naturalmente. 'Então o joelho, como é que isso está?'. Aquilo começou a afetar-me, parecia que me viam como um 'aleijado', alguém que precisava de atenção. Eu não queria isso. Apareceu o Panetolikos. Tive uma conversa muito aberta e sincera com o Benfica, disseram-me que naquele momento não estava com os índices (físicos e de confiança) para jogador de equipa A e que na equipa B não ia ter muito espaço. Apareceu-me uma oportunidade de uma primeira divisão interessante, num clube onde iria jogar e foi muito bom. 

zz - Mudou de contexto. 

GR - Passei do 'Guga das lesões' para o 'ninguém sabe quem é o Guga'. Isso fez-me esquecer as lesões e comecei do zero. Fiz seis meses bons, com jogos interessantes, até aparecer o Famalicão. 

zz - Já sem ligação ao Benfica? 

GR - Houve uma partilha de passe, 50/50, e desvinculei-me do Benfica. Saí do calvário, foi uma lufada de ar fresco. Sei que as pessoas não faziam por mal, mas no Benfica estavam preocupadas comigo e não queriam que eu tivesse mais azar. Acabavam por me fazer lembrar de tudo o que eu tinha passado. 

zz - Há boas histórias na experiência grega? 

GR - Fui com o Pedro Amaral, um dos meus melhores amigos, e partilhámos casa. A Grécia é dos países que mais gosto, fiz questão de ir lá de férias em 2023. Adorei a comida, tem uma gastronomia incrível e fiquei a adorar o café deles. Nessa altura bebia café com açúcar e na Grécia fui obrigado a tirar o açúcar porque bebia cinco/seis cafés por dia (risos). Eles têm lá o 'fredo expresso', um café num copo de água, tipo café duplo. Com gelo e espuma. Eles bebem aquilo a tarde toda. Cafeína não faltava. Levavam o café para o treino, bebiam no ginásio e no balneário.

zz - Não voltou a ter problemas com lesões?

GR - Só neste início de época é que falhei dois jogos, por culpa de duas entorses. Mas foram coisas traumáticas, não dá para controlar. Ainda hoje faço trabalho específico para reforçar o joelho, musculação. Não vivo sem isso, para mim é uma obrigação. Não só pelas lesões, sinto-me mais disponível em campo. 

zz - E como é o Guga fora de campo? Quais os interesses além do futebol, há alguma paixão escondida? 

GR - Sou uma pessoa simples. Gosto de jantar fora, de conhecer restaurantes novos e tenho uma pessoa que partilha comigo esses prazeres, a minha namorada. A Mariana. Gosto de ficar em casa a ver séries e filmes, mas quando posso vou dar uma volta e conhecer sítios novos. Aqui não faltam coisas novas para isso. 

zz - O contrato na China acaba quando? 

GR - São dois anos, este e mais um. Por isso, acaba final de 2025. 

zz - Já planeou o passo seguinte ou prefere viver devagarinho, passo a passo? 

GR - Tenho 26 anos, sou novo, mas o jogador hoje é mais inteligente e sabe que tem de preparar o futuro. Já faço alguns investimentos fora do futebol, que me darão uma base na vida. Gostaria de continuar sempre ligado ao futebol. Ao dia de hoje, diria que não na função de treinador, mais como agente de futebolistas ou na estrutura de um clube. Treinador... ainda ontem falava disso, é uma profissão muito isolada e incompreendida. A culpa é sempre do treinador e acho isso injusto. Nem todos são competentes, mas eu tenho apanhado treinadores muito bem preparados. 

Portugal
Guga Rodrigues
NomeGonçalo Rosa Gonçalves Pereira Rodrigues
Nascimento/Idade1997-07-18(26 anos)
Nacionalidade
Portugal
Portugal
PosiçãoMédio (Médio Centro)

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