A ligação da cidade - e do seu clube - com o estádio é rara em comparação com outras cidades e clubes de Itália. O Olímpico de Roma e o San Siro podem ser maiores em dimensão, o Dell'Alpi e agora o Nuovo Stadio da Juventus podem celebrar mais títulos, mas nenhum estádio italiano tem uma ligação tão umbilical com o coração dos habitantes da sua cidade. Ir a Nápoles e não sentir o pulsar de San Paolo é tão grave como ir a Roma e não ver o Papa...
San Paolo é um dos palcos emblemáticos do futebol italiano. Casa do Napoli, palco onde a arte de Diego Armando Maradona atingiu o zénite da sua carreira.
Não é coincidência que, em 2020, o Estádio mudou de nome para honrar o falecido craque argentino.
A ligação direta ao divino
Uma lenda conta que foi precisamente em Nápoles, algures entre Fuorigrotta e Pozzuoli que São Paulo (1) de Tarso desembarcou quando chegou a Itália. Seria perto de onde se encontra o atual estádio que o apóstolo iniciou a sua caminhada pela Via Ápia com destino a Roma, «a cabeça do Mundo», onde, tal como São Pedro, provavelmente perdeu a vida.
Se bem que São Paulo não seja o padroeiro da cidade, essa honra pertence a São Januário, localmente conhecido como San Gennaro, a devoção dos napolitanos ao apóstolo convertido na estrada para Damasco é enorme e sempre foi. A ligação de Paulo de Tarso à cidade do Vesúvio remonta a essa lenda, mas já a antes havia uma ligação direta do divino ao coração napolitano.
Virgílio, o grande poeta latino, viveu em Nápoles e lá escreveu a célebre Eneida. A sua suposta tumba, a Crypta Neapolitana, encontra-se na Piedigrotta, bem na entrada do famoso túnel construído durante o reinado de Augusto, que liga a atual Mergelina a Fuorigrotta.
A galeria de túneis escavada no século I a.e.C. sob a colina de Posillipo ligava a Nápoles romana a Puteoli e foi uma das maiores obras de engenharia do Império Romano. De um lado da entrada ficava a Piedigrotta, do outro a Fuorigrotta, do latim "fuoris crypta", fora da gruta (caverna).
Seria do lado de fora que teria lugar o desembarque de São Paulo, seria também nessa zona que Virgílio se inspiraria para escrever a «Eneida», e seria lá que colocaria o desembarque de Eneias depois da Guerra de Troia, em Cumae (2), bem perto do Lago Averno, onde ficava a suposta entrada do Inferno.
Das margens do lago à Piazzale Vincenzo Tecchio, onde se encontra o Estádio de San Paolo, distam cerca de dez quilómetros. Na boca dos adeptos napolitanos, não é difícil encontrar quem defenda que essa é a distância exata entre o céu e o inferno.
Um estádio para a cidade
Durante séculos esta parte da cidade, distante do centro, era iminentemente rural e assim seria até ao século XX. A chegada do comboio, a linha ferroviária de Cumana, a proximidade da estação de caminhos-de-ferro na Mergellina que ligava a cidade ao norte por Pozzuoli, tudo isso transformou a zona, mas a verdadeira transformação só chegou com a verdadeira revolução que o governo de Mussolini provocou na zona, com a quase completa demolição e posterior reconstrução de Fuorigrotta, para que Nápoles recebesse a "Mostra Triennale delle terre italiane d'Oltremare". (3)
Mas seria só bem depois da Segunda Guerra Mundial que começou a construção do edifício mais icónico de Fuorigrotta, o então Stadio del Sole (4), mais tarde rebatizado de San Paolo, para homenagear a tradição do desembarque do Apóstolo em Fuorigrotta.
Até então, o Napoli jogara primeiro no Estádio Ascarelli, que recebera jogos do Mundial de 1934 e mais tarde no Stadio Collana, que seria a casa dos azuis celestes até 1959.
Nesse ano nasceu o novo estádio, que inicialmente era suposto ter só um anel, mas acabou para receber um segundo, detendo uma lotação de 87,500 espetadores aquando da inauguração, no dia 6 de dezembro. No ano seguinte receberia alguns dos jogos preliminares do torneio olímpico de futebol das Olimpíadas de Roma.
Com pista de atletismo e iluminação, o estádio tornou-se um dos principais recintos desportivos do país e um orgulho dos napolitanos.
San Paolo seria escolhido para receber jogos durante o Euro 1980, recebendo o jogo de atribuição do terceiro lugar, entre a Itália e a Checoslováquia.
A «casa argentina»
Dez anos mais tarde seria palco do Mundial de 1990. A Argentina de Maradona, estrela maior do Nápoles, teve sede no San Paolo, e lá bateu a URSS e empatou com a Roménia garantindo um lugar na segunda fase, apesar da derrota com os Camarões no primeiro jogo em Milão.
Como vencedores do grupo da Argentina, os africanos ganharam o direito de jogar em Nápoles e seria numa tarde de sol no San Paolo, que os leões indomáveis liderados por Roger Milla bateram a Colômbia, com o célebre roubo de bola de Milla ao colombiano Higuita.
Nos quartos-de-final, um épico Inglaterra x Camarões (3x2) ficou na memória dos apaixonados do futebol, mas seria a meia-final entre a Argentina e a Itália que mexeria com o imaginário do adepto comum, em particular o italiano.
Antes da partida Maradona pedira aos napolitanos que o apoiassem, e muitos acreditavam que os adeptos napolitanos iam trair a sua Itália, mas na hora da verdade, o seu coração falou mais alto e o apoio foi incondicional à Squadra Azzurra. Nas bancadas podia-se ler "Diego, Napoli ti ama ma l'Italia è la nostra patria" ou "Diego nei cuori, Italia nei cori". Os napolitanos tinham o seu ídolo no coração e San Paolo foi o único estádio que a Argentina visitou durante a competição onde o hino nacional argentino não foi assobiado.
A Itália atacou e jogou mais, mas a Argentina aguentou e venceu nas grandes penalidades, acabando com o sonho transalpino do tetracampeonato. Por ironia do destino, coube a Diego marcar o penálti decisivo.
Problemas e polémicas
As obras de requalificação do San Paolo para o mundial provocaram acirrada polémica na cidade. A construção de uma cobertura para a bancada, obrigou à remoção do placard eletrónico, obrigando também a mexer na estrutura dos anéis do estádio.
No exterior, toda a zona envolvente foi alterada, retirando-se o piso que lá se encontrava desde a Exposição do Ultramar. O novo piso rapidamente se deteriorou, provocando constantes quedas e tornando-se muito perigoso para quem se desloca ao estádio.
Em 2001, durante uma grande tempestade que assolou a região de Nápoles, o estádio ficou inundado com as águas pluviais que desciam das encostas circundantes. San Paolo encontra-se no ponto mais baixo da Fuorigrotta, e todas as alterações efetuadas na topografia local tornaram o San Paolo no destino das enxurradas.
As constantes inundações, a antiguidade da estrutura e a proximidade do mar e dos seu ventos húmidos, detriorou o estádio de tal forma que teve de ser encerrado durante um ano, obrigando o Napoli a jogar em casa emprestada durante uma época. Ao mesmo tempo, as autoridades municipais propunham a alteração do nome, batizando-o como Stadio San Paolo - Diego Armando Maradona, o que provocou grande comoção entre os adeptos, mas em particular nos fiéis, tendo o Arcebispo de Nápoles declarado publicamente a oposição da igreja católica à alteração do nome.
Nos anos que se seguiram o estádio sofreu alterações constantes, recebendo um novo relvado em 2010, para substituir o antigo, plantado em 1987. No ano seguinte, depois do Napoli se qualificar para a Champions, San Paolo sofreu nova remodelação, para estar habilitado a receber jogos da mais importante competição da UEFA.
Em 2020, depois da morte de Diego Armando Maradona, o estádio passou a ter o nome da maior lenda do futebol napolitano.
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(1) San Paolo em italiano.
(2) Cuma em italiano, cidade fundada por colonos gregos de Eubeia no século VIII a.e.C..
(3) Mostra Trienal das terras italianas do Ultramar (Líbia, Eritreia, Somália e das Ilhas Gregas do Egéu).
(4) Estádio do Sol.